Fascículo 01 | A Terra das 3 Montanhas
- Castória Oficial
- 24 de abr.
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— Isso é mesmo… necessário, Senhor? — perguntou Etah, desolada.
— Sim.
— Eu… não posso dizer que entendo, mas farei a sua vontade.
— Você ainda está incompleta, Etah. Mas seu sentimento de ódio será forte… de mais a mais, você também não tem escolha.
— Sim, Senhor… Senhor… eu tenho um propósito?
O silêncio tomou conta.
Etah, a Soberana do Sonho Vingativo, desceu a escada da torre frontal do castelo, localizado no cume da Montanha do Norte, com uma missão em suas mãos: lutar contra os habitantes dos lados iluminados das montanhas. Entrou no salão principal, onde se encontravam as três bruxas irmãs que a serviam:
— Winifred — falou Etah com voz firme em direção à bruxa de cabelos ruivos. — Preciso me comunicar com os Insignes ainda hoje.
— Sim, senhora — a jovem bruxa respondeu prontamente, saindo pela grande porta de madeira escura adornada com infinitos detalhes arabescos dourados, iluminados apenas pela luz das velas espalhadas pelo salão mergulhado em sombras.
Era cedo, a Estrela Central recém se tornara visível nas costas do castelo; aqui o tempo é contabilizado pela posição desta estrela hipergigante de brilho avermelhado que se alinha com o meridiano da Montanha do Norte, marcando a metade de um período de 24 horas quando está exatamente acima de seu cume. Dia e noite neste lugar se tornam apenas uma divisão geográfica, por conta de um capricho do universo onde este mundo mágico, conhecido como Egécia, existe.
As três montanhas que formam a região habitável de Egécia são abençoadas constantemente por um sol resplandecente nas encostas do leste, enquanto o oeste é banhado por uma escuridão eterna, onde a única fonte de luz natural é a lua pálida, refletindo de maneira branda o brilho solar. Este fenômeno acontece pois a rotação do planeta se dá em torno de seu eixo horizontal, e a translação está em perfeita sincronia com os outros astros, como se o Criador tivesse decidido assim.
Isto produz um efeito intrigante nos habitantes de Egécia: aqueles que nascem e convivem em uma encosta escura, afloram sentimentos sombrios, já aqueles que estão nos lados iluminados, afloram sentimentos bons. Na Montanha do Norte, o lado iluminado aflora em seu povo o Amor, e o lado escuro, o inverso, o Ódio. A Montanha do Leste abriga a Esperança e o Desespero e, finalmente, a Montanha do Oeste abriga a Felicidade e a Tristeza. A Soberana Etah, que nasceu e viveu no lado escuro da Montanha do Norte, aflorou em si o Ódio. Na prática, isto não quer dizer que ela não tenha a capacidade de experienciar outros sentimentos, porém o principal direcionador de seus pensamentos e ações, é o Ódio. Esta lógica se aplica a todos que vivem em Egécia, cada qual com seu respectivo sentimento.
Até o momento, Etah não havia se preocupado com a natureza de seu mundo, nem teria como fazê-lo… mas após seu encontro na torre frontal, começara a entender (apenas o necessário, é claro). Existem diversos sentimentos, com sutilezas que os tornam únicos e complexos, porém há seis sentimentos-chave, que dão origem a todos os outros. São estes que, devido a um acontecimento devastador há 2 mil anos atrás, se fragmentaram e se tornaram algo a mais, algo físico, químico. Se conectaram à terra e aos seres vivos; os sentimentos bons à luz do sol, os sentimentos ruins na escuridão, e foram a gênese de Egécia.
Os antigos contam histórias que teorizam uma grande montanha, verdadeiramente colossal, onde a paz reinava sobre uma civilização evoluída e próspera. Esta única montanha, rodeada por um oceano infindável, foi alvo de um meteoro, que a dividiu em três, deixando um profundo vale no centro, além de desviar o eixo do planeta com seu impacto. Neste vale, segundo as lendas, está adormecida uma divindade de poder inimaginável, porém todos que se aventuraram a ir além dos sopés das montanhas e adentrá-lo, nunca mais foram vistos.
A divindade lendária é conhecida como Poimandres, o Dragão da Sabedoria, e Etah é uma Draco, raça híbrida com características humanas e de dragões que, supostamente, possui o sangue divino de Poimandres. Raça que, atualmente, é nobre e possui diversos Soberanos, os membros da casta mais alta de Egécia.
Os Soberanos são constituídos por uma pequena variedade de raças. Salvo exceções, além dos Dracos, os Humanos ocupam esta casta, assim como os Celestiais. Alguns Humanos alcançaram o status de Soberano por conta de sua inteligência e inventividade; já os Celestiais, criaturas de pele lisa e cinzenta, grandes olhos escuros e membros longos e esguios, são extremamente desenvolvidos tecnologicamente, e uma raça muito reservada. São considerados os seres mais espiritualizados de Egécia.
Além de possuírem grande influência, riqueza e governarem suas terras, os Soberanos habitualmente vivem nos cumes; se vestem de maneira elegante, com trajes que condizem com o clima frio do topo de uma cadeia de montanhas. Isto é especialmente verdade para aqueles que estão nos lados sombrios.
Abaixo dos Soberanos, uma casta menos nobre mas ainda distinta, ocupa a região central das encostas: os Insignes. Fortes guerreiros e militares de alto escalão, aristocratas importantes e fidalgos de diversas raças. Humanos e Celestiais participam desta casta em conjunto com Aelos, seres humanoides mas com atributos de aves, como bicos e asas. Anjos e Demônios, Sonhos e Pesadelos, entre outras criaturas fantásticas dividem esta classe intermediária.
Aos sopés das montanhas, vive a casta dos Comunais. São os trabalhadores, os serviçais, bastante populosos, porém pouco poderosos. Há muitos Humanos nesta classe, convivendo com os Funghicos (fungos humanoides de certa inteligência, fracos e pacíficos) e com os Jazmadros (criaturas enrugadas, de fisionomia retorcida, como pequenos duendes).
Os Comunais possuem um papel fundamental em suas encostas: cuidam das plantações que alimentam o povo, realizam a mão de obra das estruturas ocupadas por todas as castas e, por conta de seu grande número, são parte considerável da força militar de cada lado das montanhas, dando apoio aos seus Insignes e Soberanos. Alguns Comunais tem o privilégio de viver em localidades mais altas. É o caso de Winifred, a bruxa que, juntamente com suas irmãs Sarah e Mary, habita o castelo de Etah, em troca de seus serviços.
A tarefa dada por Etah a Winifred, de convocar os Insignes, seria bastante árdua, não fosse um artefato mágico. Veja, Winifred precisava contatar representantes Insignes de diferentes sentimentos sombrios aflorados e levá-los ao castelo; isto poderia significar uma jornada de vários dias descendo do cume, além da busca pelos melhores trechos, pontes e atalhos de ligação com as outras montanhas, para somente então encontrá-los em suas cidades e vilarejos, um a um. Como diversas outras atividades, viagens no lado escuro das montanhas, especialmente próximo do topo, eram muito complicadas. Neve, frio, dificuldade para se enxergar… sem falar nos ataques de bandoleiros. Por sorte, Winifred tinha acesso ao Chapéu de Atividades.
Um par de séculos atrás, o mago Axel Raden, um Insigne do lado escuro da Montanha do Norte, se apaixonou por uma bruxa Comunal do lado iluminado. Nesta época, os habitantes de Egécia tinham menos liberdade de cruzar as barreiras das montanhas, ainda mais para confraternizar com outra casta. Era malvisto. Isso fez com que o Ódio aflorado do mago ardesse imensamente, e o levou a criar o chapéu enfeitiçado, que dava a quem o vestisse a capacidade de se comunicar telepaticamente com um Insigne. Porém apenas um Comunal poderia usá-lo.
Para acobertar a verdadeira razão de ter criado esse item peculiar, o chamou de Chapéu de Atividades, alegando que seria uma ferramenta de comunicação para que subordinados pudessem avisar seus superiores em uma emergência, e produziu pouquíssimas unidades do mesmo. Claro, a verdadeira razão era para que sua amada pudesse chamá-lo do sopé da montanha. O plano deu certo e eles nunca foram descobertos, e os chapéus, ao longo dos anos, se tornaram muito cobiçados por sua utilidade.
Essa era a ferramenta que Winifred iria utilizar. A família poderosa de Etah, os Sacmis, conseguiram colocar as mãos em uma unidade há algum tempo, porém, conforme as instruções, apenas um Comunal pode fazer uso das habilidades do velho chapéu de tecido avermelhado e adornado em ouro.
Um Aelo fazia a guarda da porta do cômodo onde o chapéu estava. Winifred, conhecida por todos lacaios do castelo, apenas puxou o decote de seu vestido, revelando o símbolo estampado em seu peito, e logo o Aelo de lança empunhada, a deixou passar.
Dentro do cômodo escuro, Winifred acendeu um lampião e pôde ver o chapéu no centro da sala, vestido em um busto de mármore, parte da incrível coleção de esculturas dos Sacmis. Ouviu um ruído estranho ao se aproximar da estatueta e, quando estendeu a mão para pegá-lo, um gato travesso que vivia rondando o castelo pulou em cima de Winifred, que tomou um grande susto e deixou cair o chapéu. Juntou o chapéu e gritou, afugentando o gato alaranjado, que logo sumiu nas sombras.
Com o chapéu a postos, Winifred fechou os olhos, concentrando-se. A experiência de se comunicar através do Chapéu de Atividades era estranha. Os meandros do feitiço aplicado nessas peças nunca foram totalmente descobertos. Os Comunais alegavam que era como se deixassem de existir por um segundo, até começarem a ouvir a voz do Insigne que visavam contatar. Alguns se sentiam nauseados e até desmaiavam. A prática se tornou uma arte que, hoje em dia, poucos conseguiam executar com destreza. As bruxas irmãs possuíam esta habilidade, um dos motivos de terem o privilégio de conviver no castelo dos Sacmis. E Winifred, que tinha sua Tristeza aflorada, era a que se sentia mais à vontade fazendo a conexão (talvez uma característica masoquista de uma ocidental do lado escuro).
Etah não precisou especificar quais Insignes chamar, Winifred sabia apenas pelo tom de sua mestra. Deveria chamar os três Demônios, um de cada montanha, de seus respectivos lados escuros: os Hex.
Os Hex fazem parte de uma raça ancestral ainda mais antiga que os Dracos, presente desde antes da formação das três montanhas. Suspeita-se que eram todos anjos que viviam na terra nos tempos antigos, porém, durante o impacto de dois milênios atrás, foram divididos em Anjos e Demônios, com a fragmentação dos sentimentos.
Winifred não conseguia imaginar qual situação ocorria para que tal medida fosse tomada… já fazia mais de uma década desde a última vez que os chamara, quando tinha apenas 14 anos e, na época, sabia exatamente o motivo: uma insurreição de Jazmadros na Montanha do Leste para qual Etah deu suporte aos Soberanos do lado escuro. A única coisa que a bruxa sabia (e que instigava sua curiosidade) era que Etah conversava com alguém quando frequentava a torre frontal do castelo, uma área proibida aos servos. Em geral, quando a Soberana descia a grande escadaria da torre após uma “sessão”, ficava calada, reflexiva, por horas a fio. Mas este não era o momento de ficar fazendo suposições… Winifred tinha uma tarefa que exigia concentração para realizar.

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